O LEFFEST apresenta um ciclo temático sobre o olhar dominante no cinema e sobre os olhares que o confrontam.
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Curadoria de Alexey Artamonov, Denis Ruzaev e Ines Branco Lopez


Confronting the Gaze – Os Olhares em Confronto nasce do desejo de homenagear filmes que ousaram questionar a natureza controversa da imagem cinematográfica e desafiar o olhar hegemónico do cinema, procurando novas e mais autênticas perspectivas.


O propósito deste ciclo pode talvez ser ilustrado pelas palavras de Laura Mulvey ao questionar: “numa cultura patriarcal, poder-se-á dizer que todo o cinema está imbuído de um olhar masculino? será possível libertá-lo destes mecanismos repressivos?” Mas a visão de Mulvey sobre a narrativa seria ela própria, mais tarde, questionada por bell hooks: “será realmente possível que as teóricas feministas que escrevem apenas sobre imagens de mulheres brancas … não ‘vejam’ a branquitude da imagem?”. Afirmando a experiência negra na análise cinematográfica, hooks cunhava assim o conceito de olhar oposicional.

De facto, se a noção de olhar foi inicialmente introduzida na teoria do cinema através da crítica feminista, ela vem sendo examinada através de diferentes perspectivas – de género e de raça, de classe e de resistência colonial, etc. –, possibilitando assim o confronto de uma infinitude de olhares.


Mas de que modo apresentar este complexo cruzamento de perspectivas? Longe de procurar simplesmente estabelecer oposições, a organização de uma série de sessões duplas tem como objectivo estimular um diálogo singular, pautado pela diversidade e pela ambiguidade.


Sessões Duplas:


Sessão Dupla #1 
Riddles of the Sphinx (1977) de Laura Mulvey e Peter Wollen
The Watermelon Woman (1996) de Cheryl Dunye


O desejo cinematográfico é questionado, desconstruído e libertado do peso do olhar masculino nesta sessão dupla dedicada a duas extraordinárias cineastas.


Obra seminal da precursora da teoria do cinema feminista, Laura Mulvey, Riddles of the Sphinx utiliza a linguagem do cinema modernista anti-narrativo para descobrir e afirmar uma voz feminina livre das amarras do patriarcado.


Realizado vinte anos depois, The Watermelon Woman de Cheryl Dunye reconsidera a ideia de feminilidade no ecrã ao apresentar, orgulhosamente, uma cineasta negra e lésbica como protagonista deste filme – uma intriga simultaneamente alegre e trágica em que a indústria de cinema é o criminoso deixado por punir.


Sessão Dupla #2 
Os Esquecidos (1950) de Luis Buñuel
The Vampires of Poverty (1978) de Luis Ospina e Carlos Mayolo 


Re-visitar uma obra-prima clássica através do olhar de um filme cuja seriedade irónica questiona as dificuldades e os limites de filmar a miséria social.


O filme de Buñuel retrata as vidas d’Os Esquecidos, as crianças marginalizadas da nossa sociedade. Sem qualquer tipo de apelo à moral ou ao julgamento, sem exagero ou fantasia, o filme é tão cru e tão nu como a própria miséria, tão insuportável como a fome ou a morte, e ultrapassa os limites da investigação documental e estética.


The Vampires of Poverty é uma representação sarcástica da outra face da moeda, uma realidade tão intolerável como a que é apresentada em Os Esquecidos: o uso e a encenação da pobreza no cinema, a exploração da miséria para propósitos comerciais. Este documentário simulado não deve, porém, ser visto como antagónico ao filme de Buñuel, mas como uma ferramenta que nos permite apreciar a consciência social, política e artística do cineasta.


Sessão Dupla #3 
Chameleon Street (1989) de Wendell B. Harris Jr. 
Free, White and 21 (1980) de Howardena Pindel


Neste diálogo entre duas vozes singulares da black art, são apresentadas perspectivas complexas sobre os conceitos de raça e de género. 


Na sua icónica obra de vídeo-arte, Free, White and 21, Howardena Pindell relata a tragédia da negritude através de uma prática de cross-dressing racial cujo objectivo é representar os seus encontros com o racismo institucional enquanto mulher negra. 


Vencedor do Grande Prémio do Júri do Festival de Sundance em 1990, Chameleon Street de Wendell B. Harris, autor criminalmente menosprezado, é um drama sobre masculinidade negra, aqui imaginado como um conflicto interno, uma batalha constante que se manifesta num jogo de imitações condenado, num desejo angustiado de “passar” por outra raça.


Sessão Dupla #4 
La Zerda ou les chants de l'oubli (1982) de Assia Djebar 
Oú en êtes-vous, Yervant Gianikian et Angela Ricci Lucchi? (2015) de Gianikian & Ricci Lucchi


Dois filmes-ensaio que partem de imagens de arquivo para, simultaneamente, as revelar como instrumentos de dominação e reconstruir uma identidade colectiva.


Em La Zerda et les chants de l'oubli, Assia Djebar reconstrói uma identidade colectiva do Magreb a partir de imagens da época colonial que envolve numa banda-sonora composta por cantigas e poemas cantados por vozes silenciadas – as vozes daqueles que foram sujeitos a um olhar diferente e excluídos da sua auto-representação.


Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi revisitam zonas de guerra do século XX através de imagens de arquivo. Ambos trabalham filmagens do pré e do pós-guerra com a sua “câmara analítica”, um método particular de revelar a violência inscrita nessas imagens.


Sessão Dupla #5
Five Year Diary (1981-1997) de Anne Charlotte Robertson
Me and My Brother (1969) de Robert Frank 


Duas abordagens incisivas sobre a criação da auto-imagem, sobre estados mentais alterados e sobre os limites das suas representações.


O incomparável épico em primeira-pessoa de Anne Charlotte Robertson, Five Year Diary, nasceu de uma análise pragmática do conflicto da cineasta com a sua própria imagem, acabando por retratar a sua batalha de anos com um transtorno de bipolaridade. O exercício transformou-se num maravilhoso e desolador monumento à subjectividade, simultaneamente sobrecarregada e elevada pelo desejo de ser visto – ou, nos termos de Robertson, de ser visto com amor.


Igualmente prosaico na sua origem, a primeira longa-metragem de Robert Frank, Me and My Brother, começa por ser um retrato de um Julius Orlovsky catatónico e transforma-se numa colagem expressionista e comovente que imagina, através de todos os meios possíveis – chegando ao ponto de convidar um actor substituto para Orlovsky –, o funcionamento da mente do outro.


Sessão Dupla #6
Pinochet Porn (2008-2016) de Ellen Cantor
Un Chant d'Amour (1950) de Jean Genet


As relações entre desejo, poder e sexualidade são analisadas no estilo bem-humorado de duas obras extraordinárias realizadas com mais de cinquenta anos de distância.


Tomando a forma de uma telenovela, simultaneamente trágica e cómica, e marcada por uma sexualidade subversiva, Pinochet Porn, opus magnum da artista de culto nova-iorquina Ellen Cantor – que trabalhou no âmbito do camp e do avant-garde feminista –, apresenta uma série de especulações sobre a construção da subjectividade e da experiência pessoal sob um regime totalitário. 


Único trabalho cinematográfico de Jean Genet, banido nos anos 50 em virtude do seu conteúdo homossexual explícito, Un Chant d'Amour é um dos filmes mais imaginativos sobre o prazer e o poder voyeurísticos. O conceito foucaultiano de pan-óptico aplicado a um  contexto sexual é aqui revelado numa altura que precede a sua própria criação.


Sessão Dupla #7 
O Meu Caso / Mon Cas (1986) de Manoel de Oliveira
Film (1966) de Samuel Beckett e Alan Schneider


As ideias de olhar e de poder autoral são questionadas, desafiadas e aparatosamente assassinadas por dois dos mais celebrados e renomados autores do século XX.


Palavras de Samuel Beckett, de José Régio e do Livro de Job, por um lado, e diferentes formas de encenação de teatro, cinema mudo e primeiros filmes sonoros, por outro. Num dos seus trabalhos mais originais, Manoel de Oliveira alterna as suas fontes, estruturas formais e regimes de presença autoral – como se questionasse a capacidade do próprio criador da imagem cinematográfica de escapar ao olhar desconcertante do meio.


No seu único trabalho cinematográfico, Film, Samuel Beckett enfrenta este mesmo meio com uma desconfiança ainda mais palpável: fantasias surrealistas de poesia visual, possibilitadas apenas pelo cinema, são aqui confrontadas com o puro terror de sentir a presença do olhar.